21 fevereiro 2010

Primeiros Momentos ** Na Beira e a 1ª Noite


Vista parcial da cidade da Beira

Se ajeitaram nas cadeiras do avião, para o percurso final, não se ouviam conversas no início do voo, era a parte final do percurso.

Carlos começou a recordar os ensinamentos de que tinha sido imbuído nas longas palestras como tratar o africano, a sua maneira de ser e até mesmo como era a dispersão das diversas línguas faladas, as demonstração iam desde a maneira de vestir, estar e organização social das diversas etnias. Não poderia dizer que não tinha conhecimento das gentes africanas, mas uma coisa era os livros, o contar de experiências, outra era encontrar a própria natureza viva e esse desconhecido lhe proporcionava algum mal estar, fora educado para controlar e não a ser controlado, gostava de saber sempre o terreno que iria pisar e tudo para ele era como desconhecido, apesar da preparação se sentia algo inseguro.

Passado algum tempo de voo, lá foi servida um ligeira refeição que a Carlos, mais pareceu um pequeno lanche, ainda pensou. É preferível a barriga mais vazia que cheia e sorriu para si mesmo da azougada ideia de à chegada não existir nada para comer ou beber, visto a hora tardia da chegada.

Mergulhado nos pensamentos do que encontraria no final do voo adormeceu.

Acordou, com uma valente cotovelada, que o Cabo-Verdiano lhe deu. Acordou de olho arregalado e levemente dorido, virou-se para o companheiro de cadeira.

- Porra, essa doeu.
- É para não te esqueceres de mim, do preto que te pôs as costelas dentro para te acordar. E se riu o Cabo-Verdiano, que de preto tinha pouco.
- Preto, mas tu não és preto Pá. Retorquiu Carlos
- De todo não, Mas tenho mais café no sangue, que leite. Disse enquanto sorria o Cabo-Verdiano, o que fez Carlos rir também
- Mas onde é o fogo então. Disse Carlos
- Nos estamos a aproximar da Beira,
- Caramba, ainda dormi um bom bocado disse Carlos.

O Avião iniciou a descida e a aproximação à pista do Aeroporto Internacional da cidade da Beira.


Aeroporto da Beira

Desta vez o tocar no solo não foi tão suave como em Luanda, a travagem foi mais brusca, os motores fizeram-se se ouvir com mais potência e uns solavancos se sobressaíram.

- É pá, era bom, eu ficar na Beira a tapar estes buracos. Afirmou Carlos com um sorriso de circunstância.
- Não querias mais nada disse o Cabo-Verdiano.
- E agora como é? Perguntou Carlos
- Sei tanto como tu, mas não tarda ficamos a saber as linhas com que vamos nos coser.
- Tu queres dizer, com nos vão cozer com “z”.
Riram os dois da peregrina ideia que Carlos teve.

O Cabo que estava a servir de comissário de bordo se aprontou para abrir a porta do avião para o desembarque. Carlos ia à frente do Cabo-Verdiano, ao chegar à porta e no inicio da escada parou, o sufoco do ar era grande e ele ficou todo transpirado e de imediato sentiu a camisa toda alagada, apesar de ainda estar com uma camisola interior de protecção contra o frio da madrugada no embarque. Lhe deu logo a vontade de retirar a gravata, olhou se algum a tirava, como ninguém a retirava a manteve, deu para ver que todos os outros tinham sentido o primeiro choque africano. Existia no ar um cheiro diferente do cheiro da metrópole, aqui era um cheiro intenso a terra e com odores que não conseguia ainda atinar.

Percorreram o espaço do avião até à aerogare num autocarro, onde todos iam de pé, não existiam lugares sentados.
O Autocarro parou frente da aerogare e todos em fila para lá se dirigiram, não existiu alfândega, nem controle de documentos de entrada.

Carlos parou no grande átrio de entrada e saída do aeroporto, e tentava vislumbrar a existência de algum atendimento, mas tudo estava fechado.
Com ele estava o Cabo-Verdiano.

- E agora?
Atirando a pergunta para o ar, Carlos ia movimentando a cabeça de um lado para o outro na tentativa de saber os passos a seguir. Mas não encontrou resposta à pergunta, junto a eles chegou o de Almodôvar.

- É pá, como é a partir daqui? Dirigindo a pergunta a Carlos.
- Estamos cá todos, acho eu. Acabou por dizer o Cabo-Verdiano.
- Vamos esperar para ver. Disse Carlos, enquanto puxava por um cigarro, o mesmo fez o de Artilharia.

Não tardou se ouviu um altifalante.
- Senhores Sargentos, os aguarda uma ‘Berliet”, para os levar para a messe de Sargentos.
O Mesmo se passou com os oficiais e praças, cada um com destino próprio.
O de Artilharia, virou-se para Carlos e para o Cabo-Verdiano.
- Lá vamos nós.
Se dirigiram à porta da saída do Aeroporto, ainda não tinham percorrido metade da gare, quando foram interpelados por um indivíduo à civil que os interrogou.
- Vocês querem trocar algum dinheiro vosso, notas de Moçambique.
Carlos sorriu, na abalada um cigano, à chegada um a negociar dinheiro, isto vai de mal a pior pensou Carlos
- Dou vinte por cento mais, por cada cem escudos da Metrópole dou cento e vinte escudos de Moçambique, não tenham receio, sou furriel tal como vocês e tratou de mostrar o cartão militar.
- Tens de dar mais um pouco disse Carlos.
- Não, é tudo o que posso dar.
- Nada feito, retorquiu Carlos.
- Olha, fazemos negócio, e eu levo vocês à messe, ou a onde quiserem ir.
- Onde nós quisermos ir?
- Vais ver, que quando chegares à messe, o Sargento da Guarda, vai dizer que não tem camas disponíveis e que se desenrasquem e terão de ir procurar hotel. Sei isso porque me sucedeu o mesmo e já lá vão dois anos.
- Mas de que arma és tu. Interrogou Carlos.
- Transmissões
- Mas isso é Engenharia disse Carlos.
- Pois é, mas já estou a terminar a comissão.
- Então porque andas a trocar a Massa.
- Para a vender aos Indianos e ganhar mais uns cobres, depois coloco a massa na minha conta da Metrópole. E ali mesmo deu uma breve explicação de como as coisas se passavam com o capital.

- Ok. Te dou dez contos (Dez Mil Escudos) e me dás doze em moeda moçambicana, está feito. Logo foi feita a troca. O Cabo-Verdiano e o de Almodôvar aproveitaram a deixa e trocaram dez das grande cada um.

Foram todos para o carro do de Transmissões, a Estrada não era muito larga e a noite estava escura, os faróis iam iluminando o bordejar da mesma, mostrado frondosas árvores. O carocha (wolksvagem), lá se ia aguentando com a carga, mesmo nos arranhões que levava na caixa de mudanças e dos “raters” que ia dando.
- É pá este carro, faz um cagaçal dos diabos no escape. Se referiu Carlos à barulheira que o carro ia fazendo.
- É gasolina de avião, disse o de Transmissões.
- Porra, usas a tropa em tudo. Disse Carlos
- Tu vais aprender, que aqui o que vale mais é o desenrascado.
- Estiveste no Norte?
- Mueda, Cabo Delgado, depois me mandaram para aqui e estou no fim, mas não volto para a Metrópole, conheci uma mulata e vou ficar por cá.
- Eu vou para Mueda, disse o Cabo-Verdiano
- Desde que não saias de lá, não é mau, aquilo é terra de Macondes, e Maconde não é bom, logo aprendes.

- Ainda não percebi bem essa história do dinheiro. Disse Carlos, explica lá isso melhor.
- É simples, eu mando o dinheiro que me deixam enviar para o meu pai levantar lá, ele levanta o dinheiro e mo manda novamente dentro de latas com chouriços, vendo os chouriços e troco pelo dinheiro de cá, o dinheiro moçambicano o volto a trocar com vocês que vão chegando e precisam de trocar a massa, só te posso dizer que já ganhei para esta lata e já quase chega para comprar uma casa.
- E o que vais fazer cá, quando despires a farda?
- Já tenho emprego garantido numa empresa que vende equipamento electrónico para embarcações e a mulher já trabalha numa companhia de seguros.
- Tens a vidinha já definida, não?
- Já isto por cá é melhor, que em Portugal.

Firam todos em silêncio, o condutor do “carocha peidão” e os maçaricos acabadinhos de chegar a terras africanas.
Chegados à messe, o de Transmissões, acompanhou os três á Messe e como ele tinha preconizado, não existia disponibilidade de camas, muitos mais estavam lá, sem saber o que fazer e iam recebendo indicações sobre pensões por ali perto e da hora que se deviam de apresentar no outro dia.

- Eu levo-os a um pequeno hotel, limpo e barato de uns minhotos, vocês ficam bem instalados e não apanham sarna, que é o que mais se apanha nesses hotéis de passagem.
- Por mim confio em ti.
O Cabo-Verdiano e o de Almodôvar anuíram.
- Começamos os três, enquanto estivermos juntos, não nos vamos separar. Disse o de Almodôvar.
- Riram os quatro.

O de Transmissões os levou a um pequeno hotel, arejado, ar condicionado, bar refrigerador no quarto e que não acharam muito caro.

- Vão tomar banho que estão todos suados, vistam uma roupa civil e voltem aqui, que eu os levo a comer num bar para Europeus.
Subiram aos quartos, pelas escadas que elevador não existia, apesar de terem ficado num 3º andar.
Depois do banho e da troca de roupa e uma rápida aparadela à barba voltaram os três para o encontro combinado.

- Vamos lá então comer qualquer coisa, vamos perto do Porto a um bar que tem sempre, bom marisco, peixe ou carne e só fecha pelas duas, eu depois os trago ao Hotel. Disse o de transmissões
- Toca a mexer então. Disse Carlos.

Chegados ao Bar, o de Transmissões cumprimentou o do Balcão e falou.
- Caneca para mim, para os meus amigos, gigante e cerveja.
Carlos, o Cabo-Verdiano e o Almodôvar se entreolharam com o á vontade do Transmissões. Nada disseram, deixaram correr o marfim, para ver o que era essa coisa do “Gigante”.
O do Bar colocou quatro canecões de um litro de cerveja cada, no Balcão frente a cada um e falou qualquer coisa para a cozinha que nenhum percebeu. Colocou uns pratinhos com tremoços e azeitonas no Balcão.
- Tremoços, azeitonas? Interrogou o de Almodôvar.
- Quem vem mais a este bar são portugueses europeus, e azeitonas e tremoços são coisas mesmo nossas, por isso este gajo tem sempre cá disso, as manda vir da Metrópole.
Os “maçaricos” ou “checas” como eram tratados os que chegam pela primeira vez a Moçambique, anuíram na explicação dada pelo de Transmissões, ainda nem meio pratinho da saudade tinha sido deglutido, quando o do Bar, apresenta a cada um, prato com dois camarões Gigantes (Tigre) que tinham sido passados pelas brasas, vinham abertos ao meio e regados com bastante manteiga. Colocou sobre a mesa três pequenos frascos de molho picante.
- Este é feito cá em casa é do bom. Disse o do Balcão e foi atender outros que iam chegando.
- Cuidado com isso, pica que se farta, não faz mal, mas dá um aquecimento do caraças.
- Todos riram. Colocaram um pouco de picante nos bichinhos.

Conversa puxa conversa e mais conversa, e mais um canecão para cada um e mais um prato dos tais gigantes.

Estavam todos bem dispostos, quando Carlos interroga o Transmissões.
- É pá, diz-me cá, só vives destes expedientes.
- Eu ainda estou na tropa, mas preciso da casa, tu não perdes nada, pelo contrário só ganhas, não andas por aí perdido e a comer porcarias, aonde te trago são pessoas sérias, não te levam mais por isso e eu vou ganhando uns trocos.
- Queres dizer percentagem pela despesa?
- Sim, mas a minha despesa é por conta da casa, só pagas a tua e ao preço da casa, ganhamos todos.
- Á minha custa.
- Repara que a terias de fazer na mesma.
O Almodôvar que estava atento à conversa.
- Na verdade tens razão, se aqui viesse sozinho ou me apresenta-se no hotel, tinha a mesma despesa.
- Por mim está tudo bem. Disse o Cabo-Verdiano já aquecido com os dois litros de cerveja no buxo.

Mas a noite ainda mal tinha nascido, ainda era criança.
- Bem agora pago eu a primeira rodada, mas não aqui, noutro lado, para vocês não esquecerem a vossa primeira noite em África.
- Vamos lá então. Disse Carlos que estava descansado, só tinha trazido um conto dos dez, pois como medida de precaução tinha deixado o resto no quarto de hotel.

Os primeiros momentos e as primeiras sensações estavam adquiridos. A partir de agora “vamos lá cambada todos à molhada” era o pensamento positivo de Carlos a funcionar no pleno.

Continua….

Karl d'Jo Menestrel
21/02/2010

1 comentário:

Paula Barros disse...

Karl, sabe o que fiz? Imprimi tudinho e li a noite passada, boa leitura antes de dormir, uma antecipação do livro.

Gosto de ler as lembranças e vivências de Carlos.

Será que ele ainda fuma?

Fico imaginando se vai demorar a chegar nos dias atuais. rsrs É sinal que estou gostando e estou curiosa como será o caminhar das histórias.

abraço e acompanhando.